Mas essa manhã, ela acordou
cansada. Tão cansada que não conseguiu achar forças para levantar da cama ou
para secar as lágrimas que escorriam sem que as notasse. Tão cansada que todo
seu conhecimento de inglês era uma inutilidade, e todos os tablados com seus quadros
negros regados de xises e gizes poderiam ser só mais um sonho ruim de quando
fazia cursinho para tentar a sorte grande num vestibular grande demais para
seus pés que calçavam sapatilhas infantis.
Todos os cálculos de
estimativas de quanto teria para uma outra garrafa amiga depois de pagar as
contas, eles eram um fantasma perdido nos pés de sua cama desarrumada, com uma
pessoa desarrumada no meio de toda aquela bagunça de travesseiros e lençóis e
manchas de café e pedaços amassados de embalagens de chocolates esquecidos.
Ela não tinha mais um nome,
ou um rosto. Ela era uma alma jogada ao acaso que perdia trabalhos mais rápido
que os encontrava. Se perdia em amores antes que pudesse colocar-se nos trilhos
para mais uma tentativa. Encontrava uma forma pateticamente engraçada de
consolo em garrafas, mais novas e mais baratas dia a dia.
Quantos anos tinha, não se
sabia. Tinha algumas rugas pequenas quando sorria, mas como tão raramente o
fazia, poder-se-ia dizer que não tinha rugas, então. Seus cabelos, há, quem
sabe, cinco anos tinham aquele brilho juvenil, o mesmo brilho que sua risada
exalava. O brilho se esvaira, junto com as gargalhadas altas em madrugadas de
embriaguez conjunta. Quando os tomava nas mãos para fazer mais um coque
desajeitado, os sentia partindo-se em pequenas partículas de descuido. O tom de
vermelho fazia lembrar de uma tangerina, toda ácida e madura, toda pronta para
quedas e para ser devorada. Sempre sorria à comparação. Sempre olhara a fruta
de maneira quase invejosa, quando criança, quando inocente. Nunca soubera o
porquê, mas se Deus lhe desse uma segunda chance para escolher e evoluir para
algo melhor, seria uma tangerina. Era uma bela fruta, afinal. Ela, não era tão
bela assim.
Sua pele tinha um tom pálido,
quase doentio, às vezes. Tinha olheiras profundas, daquele roxo claro. Aquelas
olheiras, marcas de insônia de tanto escrever e ler e tentar sonhar com os
olhos fechados, aqueles traços de cansaço em sua forma mais pura que, dependendo
da luminosidade, refletiam a olhos estranhos como pequenos sorrisos que pediam
mais uma xícara de café. Aquelas olheiras, tinha-as desde que seu cabelo feliz
decidira por tornar-se pedaços avulsos de tristeza pregados a cabeça. Aquelas
olheiras encaravam-na, vendo fundo em sua alma, a todo trago sofrido que dava
em frente ao espelho, sujo, empoeirado e rachado – fazendo-o sempre para ter
certeza de que seus olhos mantinham-se os dois do mesmo tamanho, com o mesmo
traço natural que maquiagem nenhuma poderia ocultar. Tinha aquela obsessão
estranha com o tamanho dos olhos. Talvez fossem os anos incontáveis que
carregava às costas. Talvez fosse falta de uma mania mais saudável, do que
olhar para si mesma num espelho quebradiço, como seus dias, como sua saúde,
enquanto afundava essa cada vez mais num abismo colorido de álcool, nicotina e
sexo desenfreado. Talvez, dos três, o sexo lhe fosse o mais saudável. Fazia-lhe
mal, mais tarde, quando, ao olhar-se no espelho que eram seus olhos, o esquerdo
sempre menor, por mais que ela negasse, com a olheira um tanto mais profunda,
via sempre de forma embaçada pela nicotina a garota da risada feliz, com
ruguinhas felizes ao invés de cabelos opacos e unhas roídas pela ansiedade de
viver.
Acordava, todas as manhãs,
com ânsia de viver, ânsia de ser. Sempre acabava suas madrugadas insones, vendo
aquele tom de laranja, quase cor de tangerina, tingindo o céu, com aquele sol
que lhe doía os olhos, o esquerdo sempre menor, por mais que ela negasse. E as
olheiras tornavam-se mais profundas e ela acendia mais um cigarro, quem sabe o
décimo desde que deitara-se na cama,
para encarar o teto meio embolorado, meio rachado, e ela tragava fundo,
sentindo o que lhe restava de pulmões chorando baixinho e olhava-se, quem sabe
no reflexo na janela, quem sabe com os olhos fechados, reproduzindo sua imagem
com a imaginação. Lá, o olho esquerdo era sempre perfeito. E ele era azul,
assim como o direito. E não havia olheiras ou contas ou aquelas lágrimas já
meio secas de tanto caírem sem serem vistas. E, lá, naquele mundo imaginário de
frações de segundos, do momento que os dedos com as pontas já amareladas levam
aos lábios o cigarro barato daquela banquinha suja da esquina até o momento que
não consegue mais segurar aquela fumaça suja entre entre seus dentes cerrados,
ela via-se com um sorriso pequeno, com garrafas e cigarros e estranhos num
canto desconhecido a sua vida. Era fácil sorrir, assim, de olhos fechados.
Escrevia cartas. Todas as
noites. As noites insones. Escrevia cartas para todos os amigos que se foram,
que não lembrava-se mais do nome ou do cheiro ou do sorriso ou da textura dos
cabelos. Escrevia e contava sobre como sua vida ia – estava sempre maravilhosa.
Com o emprego perfeito e o amor perfeito, na cama, nos vasinhos na janela, sem
olheiras ou os remédios para mantê-la de pé. Mentia para eles, mentia para si. Mas,
quem veria aquelas cartas, afinal? Eram só mais uma mentira e, bem, mentir
todos nós mentimos. Por que não uma a mais? Por que não amar aquela vida de
plástico, um pouquinho mais?
Escrevia bilhetes. Todas as
manhãs. Sempre dizia que estava indo embora, não me liguem, não me procurem,
não, não existo mais, vou para o exterior, a pequena bolsa de couro está
recheada de roupas úteis e sonhos. Falava sozinha. Vivia sozinha. Deixava
aqueles bilhetes na mesa descascada da cozinha pequena, sempre com aquela
caneta azul por cima, cuja tinta sempre vazava na hora dos pontos e dos pingos,
deixando rastros de mãos trêmulas. Despedia-se de si mesma, todos os dias.
Despedia-se, com aquele adeus choroso mas decidido, mas nunca ia embora. Era
uma outra mentira, daquelas bonitas e sorridentes, como suas olheiras.
Era fácil viver, assim, de
olhos fechados.
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