Friday 19 October 2012


Mas essa manhã, ela acordou cansada. Tão cansada que não conseguiu achar forças para levantar da cama ou para secar as lágrimas que escorriam sem que as notasse. Tão cansada que todo seu conhecimento de inglês era uma inutilidade, e todos os tablados com seus quadros negros regados de xises e gizes poderiam ser só mais um sonho ruim de quando fazia cursinho para tentar a sorte grande num vestibular grande demais para seus pés que calçavam sapatilhas infantis.

Todos os cálculos de estimativas de quanto teria para uma outra garrafa amiga depois de pagar as contas, eles eram um fantasma perdido nos pés de sua cama desarrumada, com uma pessoa desarrumada no meio de toda aquela bagunça de travesseiros e lençóis e manchas de café e pedaços amassados de embalagens de chocolates esquecidos.

Ela não tinha mais um nome, ou um rosto. Ela era uma alma jogada ao acaso que perdia trabalhos mais rápido que os encontrava. Se perdia em amores antes que pudesse colocar-se nos trilhos para mais uma tentativa. Encontrava uma forma pateticamente engraçada de consolo em garrafas, mais novas e mais baratas dia a dia.

Quantos anos tinha, não se sabia. Tinha algumas rugas pequenas quando sorria, mas como tão raramente o fazia, poder-se-ia dizer que não tinha rugas, então. Seus cabelos, há, quem sabe, cinco anos tinham aquele brilho juvenil, o mesmo brilho que sua risada exalava. O brilho se esvaira, junto com as gargalhadas altas em madrugadas de embriaguez conjunta. Quando os tomava nas mãos para fazer mais um coque desajeitado, os sentia partindo-se em pequenas partículas de descuido. O tom de vermelho fazia lembrar de uma tangerina, toda ácida e madura, toda pronta para quedas e para ser devorada. Sempre sorria à comparação. Sempre olhara a fruta de maneira quase invejosa, quando criança, quando inocente. Nunca soubera o porquê, mas se Deus lhe desse uma segunda chance para escolher e evoluir para algo melhor, seria uma tangerina. Era uma bela fruta, afinal. Ela, não era tão bela assim.

Sua pele tinha um tom pálido, quase doentio, às vezes. Tinha olheiras profundas, daquele roxo claro. Aquelas olheiras, marcas de insônia de tanto escrever e ler e tentar sonhar com os olhos fechados, aqueles traços de cansaço em sua forma mais pura que, dependendo da luminosidade, refletiam a olhos estranhos como pequenos sorrisos que pediam mais uma xícara de café. Aquelas olheiras, tinha-as desde que seu cabelo feliz decidira por tornar-se pedaços avulsos de tristeza pregados a cabeça. Aquelas olheiras encaravam-na, vendo fundo em sua alma, a todo trago sofrido que dava em frente ao espelho, sujo, empoeirado e rachado – fazendo-o sempre para ter certeza de que seus olhos mantinham-se os dois do mesmo tamanho, com o mesmo traço natural que maquiagem nenhuma poderia ocultar. Tinha aquela obsessão estranha com o tamanho dos olhos. Talvez fossem os anos incontáveis que carregava às costas. Talvez fosse falta de uma mania mais saudável, do que olhar para si mesma num espelho quebradiço, como seus dias, como sua saúde, enquanto afundava essa cada vez mais num abismo colorido de álcool, nicotina e sexo desenfreado. Talvez, dos três, o sexo lhe fosse o mais saudável. Fazia-lhe mal, mais tarde, quando, ao olhar-se no espelho que eram seus olhos, o esquerdo sempre menor, por mais que ela negasse, com a olheira um tanto mais profunda, via sempre de forma embaçada pela nicotina a garota da risada feliz, com ruguinhas felizes ao invés de cabelos opacos e unhas roídas pela ansiedade de viver.

Acordava, todas as manhãs, com ânsia de viver, ânsia de ser. Sempre acabava suas madrugadas insones, vendo aquele tom de laranja, quase cor de tangerina, tingindo o céu, com aquele sol que lhe doía os olhos, o esquerdo sempre menor, por mais que ela negasse. E as olheiras tornavam-se mais profundas e ela acendia mais um cigarro, quem sabe o décimo desde que deitara-se na cama,  para encarar o teto meio embolorado, meio rachado, e ela tragava fundo, sentindo o que lhe restava de pulmões chorando baixinho e olhava-se, quem sabe no reflexo na janela, quem sabe com os olhos fechados, reproduzindo sua imagem com a imaginação. Lá, o olho esquerdo era sempre perfeito. E ele era azul, assim como o direito. E não havia olheiras ou contas ou aquelas lágrimas já meio secas de tanto caírem sem serem vistas. E, lá, naquele mundo imaginário de frações de segundos, do momento que os dedos com as pontas já amareladas levam aos lábios o cigarro barato daquela banquinha suja da esquina até o momento que não consegue mais segurar aquela fumaça suja entre entre seus dentes cerrados, ela via-se com um sorriso pequeno, com garrafas e cigarros e estranhos num canto desconhecido a sua vida. Era fácil sorrir, assim, de olhos fechados.

Escrevia cartas. Todas as noites. As noites insones. Escrevia cartas para todos os amigos que se foram, que não lembrava-se mais do nome ou do cheiro ou do sorriso ou da textura dos cabelos. Escrevia e contava sobre como sua vida ia – estava sempre maravilhosa. Com o emprego perfeito e o amor perfeito, na cama, nos vasinhos na janela, sem olheiras ou os remédios para mantê-la de pé. Mentia para eles, mentia para si. Mas, quem veria aquelas cartas, afinal? Eram só mais uma mentira e, bem, mentir todos nós mentimos. Por que não uma a mais? Por que não amar aquela vida de plástico, um pouquinho mais?

Escrevia bilhetes. Todas as manhãs. Sempre dizia que estava indo embora, não me liguem, não me procurem, não, não existo mais, vou para o exterior, a pequena bolsa de couro está recheada de roupas úteis e sonhos. Falava sozinha. Vivia sozinha. Deixava aqueles bilhetes na mesa descascada da cozinha pequena, sempre com aquela caneta azul por cima, cuja tinta sempre vazava na hora dos pontos e dos pingos, deixando rastros de mãos trêmulas. Despedia-se de si mesma, todos os dias. Despedia-se, com aquele adeus choroso mas decidido, mas nunca ia embora. Era uma outra mentira, daquelas bonitas e sorridentes, como suas olheiras.

Era fácil viver, assim, de olhos fechados.

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